quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Como a garota do copo d'água (Renoir)



- Sabe a garota do copo d'água?
- Sei.
- Se parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
- Em alguém do quadro?
- Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar, e sentiu que eram parecidos.
- Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente que criar laços com os que estão presentes.
- Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
- E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?
(O Fabuloso Destino de Amélie Poulain)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

a castanha mora no caju
ela nasce em vermelho (ao contrário das outras frutas)
e quando vira verde, vira renda
renda de fazer blusa
e renda vira branco
(mas castanha continua vermelho)
dá gosto de vermelho um pouco queimado
um pouco doce
um pouco azedo
dá gosto de terra distante e também faz suco
(não de castanha, castanha por vezes dá chocolate)
chocolate verde?
um que vê pode dizer que é amarelo
eu continuo dizendo que é verde, e digo de conhecimento meu que tenho das cores
(e se quero dizer que amarelo é verde, ou que esse verde-amarelo, que venham me desdizer no não concordar)
porque digo do que vejo
e vejo caju verde-amarelo misturado com vermelho que dá castanha de fazer chocolate
(e transborda no pé em dias de queimar o chão - quando cai faz "ploft")

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

notícias do além

daqui tento ver além das lentes...
do exílio de mim mesma grito ansiedade e temores.
me escondo por trás das lentes ou nos caminhos de antes (passados, decompostos, repostos, de natureza viva, morta e reviva)
e aguardo o êxtase prometido...
(de te ver voltar a ver)
no estar e querer ser
(e o querer de parar a aflição)
fugi de mim: é isso!

sábado, 10 de novembro de 2007

Sentimento do mundo









Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

(Carlos Drummond de Andrade)


sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores.
Pacus comem frutas de carandá nos cachos.


(Manoel de Barros, O livro das ignorãças)

sábado, 3 de novembro de 2007

"Ô chuva vem me dizer
Se posso ir lá em cima prá derramar você"

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Considerações sobre mim mesma

Definitivamente sou uma pessoa mediana. Sou de outono e primavera. Sou de doce amargo. Meio amargo. Não sou do tipo chocolate ao leite. Sou daquelas tipo chocolate amargo e geléia de abacaxi. Sou dessas mulheres que toma vinho seco e chopp claro. Sou daquelas que toma suco sem açucar e salada sem sal (menos de rúcula). Que gosta de pimenta (mas não muito forte). Dessas que preferem as margaridas e os girassóis. Há muito mais cor nos girassóis.
Sou dessas mulheres que não sentem muito intensamente as coisas (mas gosto do vento). Daquelas que percebem a falta de alguma coisa, mas levam tempo pra descobrir que é dos amigos. Das que raramente se apaixonam (de verdade). Mas que sempre ficam caídas por alguém (e sofrem resignadas). Penso, as vezes, que sou mesmo do tipo que os homens não querem se apaixonar (porque sou assim, meio torta). E sofro resignada, um pouco conformada.
O que torna minha vida mais mediana é mesmo não ter vivido intensamente as coisas. É esse desânimo drummondiano de seguir em frente.
É o nunca ter sido mais do que eu sou. É a sensação do para sempre (não como no caso da Cinderela)...

domingo, 28 de outubro de 2007

Manoel de Barros e o chinuque

"Ela coloca raízes de potentilha na pequenez de um cesto para conchas"

Quem disse foi Boas (1911), eu tirei de Lévi-Strauss (1989). Mas Boas estava dizendo da maneira chinuque de enunciar os fatos. Das abstrações...

Depois disso ficou mais fácil entender Manoel de Barros. Ele olha para as coisas de um modo chinuque (ainda que também olhe de azul, ou de ave, ou de criança).

sábado, 27 de outubro de 2007

Edith Piaf

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal
Tout ça m'est bien égal
Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
C'est payé, balayé, oublié
Je me fous du passé
Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux
Balayés mes amours
Avec leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal
Tout ça m'est bien égal
Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Car ma vie
Car mes joies
Aujourd'hui
Ça commence avec toi...

Dor

ando doente de uma doença de não ter
de não ser
não estar
não poder
não tocar
e querer
querer
querer

querer que seja de gritar
querer de poder querer
é essa aflição da dor que rasga
(dessa daquelas sem razões da mente)

uma grita em mim
(em minha cabeça grita)
ela se agita e bate uma e outra vez
é esse (des)sentimento que insiste em sentir
(não vem de mim, vem de um não ser de alguém)

como poder
e cessar a dor como?!

(volto ao ponto onde começo - queria a leveza da ave mas por hora me contentaria em saber do sentir do outro - ou em me saber no outro)

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

não sei o que dizer desses dias tortos
em que eu me perco em encontrar
no quanto mais sinto de mim menos sei
no quanto mais penso mais

mais de não saber
mais de querer
mais de temer
um mais de pânico

esses dias tortos que parecem passar sufocantes
que parecem causar tremores
horrores

esses dias vão passando
os dias
a sanidade passa com os dias
trepido em temores

porque hoje mais sei de manhã e menos sei dos certos
hoje mais quero o jasmim
e o engasgo que vem só pode ser do querer do jasmim

do longe do longe
que espera passar os dias para sentir
no longe que está que não pode tocar
as mãos e os lábios e o cabelo
e tudo e tudo
tão longe logo ali

que tem que esperar
passar os dias
passam
lentos longos quentes
passam trepidantes ensurdecedores
passam chuvas

e o querer do ter
a vontade de estar na presença
o sentir querer

esse sufoco na garganta
dos dias que passam e não passam
porque chega 5 mas não chega 15
porque queria 15 mas não queria 5

e tem que ser

terça-feira, 4 de setembro de 2007

desse e de outros setembros

Para os dias que param
frenéticos e sonolentos

Para as noites que não adormecem (às quatro horas da manhã)
Para as manhãs que adornam as horas com gosto de café e suplícios de erva-doce

Para a solidão de horas a fio passadas no parar dos olhos que não são
... não sabem, simplesmente...
Para os olhos de água, olhos vermelhos

Para o torpor das manhãs (des)inebriadas
pela falta, pela (des)sabedoria...
que não deixa de ser esse entender das coisas todas
esse sofrer pelas manhãs
essa falta das pernas
dos braços

Para as mãos que suplicam (in)sanidade
e (des)instabilidade...
as mãos ora trêmulas, ora frenéticas, ora autistas, ora molhadas
da mesma água dos olhos

As mãos que sabem, que ouvem (mais que os ouvidos)
Da sabedoria que só quer saber de poesia
por ora dilacerada pela antropologia (que pretende poesia!)

(Ainda procuro algum modo de ser ave
por ora me contento com o vento batendo no rosto
e o gosto de mais um setembro
e as lembranças, os desejos, os ensejos)

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Sobre desejos e devaneios de ave

As coisas têm mais convicção dos seus desejos que os desejos têm a convicção das pessoas
Pessoas partilham com as aves devaneios de tardes de outonos azuis e damas da noite começando a dar cheiro
Desejos não são coisas que se deixam pegar de números ou de prazos ou de métodos
Desejos não são coisas do tipo quantificáveis.

É possível que um desejo seja o devaneio de mãos entrelaçando cabelos noites adentro
É possível que devaneio seja a voz de uma mulher que pega emprestada a sonoridade de uma ave
É possível que a falta de convicção seja o desejo de ser ave.

E talvez, das coisas e pessoas tão entendidas de aves, esse querer tenha se perdido em noites quentes de inverno acompanhadas de toalhas de hotel.
A falta de pegar na voz de uma ave cause desânimos matutinos e desculpas de café da manhã.

Talvez a convicção seja a certeza de acordar e dormir sem mãos entrelaçando o cabelo
(ou sem aves)
Talvez o querer seja um querer tão intenso e arrebatador que ele já se perdeu dele mesmo
(não sabe onde começa ou onde termina)

Porque o querer da voz e das mãos é o mesmo
E pode ser que o devaneio seja o de sempre: o querer tão intensamente a alguém e ser desejado em retribuição.

É possível que as linhas não dêem uma tese, mas quem sabe façam acordar de manhã...
(porque eu só queria o querer)

Do que sei de devaneio, é o que sempre desejei.
E você, que sabe pegar em voz de ave, qual o seu maior desejo?...

(Para apanhadores de voz, voz de ave, voz de mulher-ave, voz de mulher que não sabe querer e só quer ser ave.
Para quem quer querer, ou não sabe querer)

domingo, 1 de julho de 2007

memória

    Amar o perdido
    deixa confundido
    este coração.

    Nada pode o olvido
    contra o sem sentido
    apelo do Não.

    As coisas tangíveis
    tornam-se insensíveis
    à palma da mão

    Mas as coisas findas
    muito mais que lindas,
    essas ficarão.

    (Carlos Drummond de Andrade)


Tenho essa mania, um velho hábito, de amar as coisas perdidas.
Sofro dos dilemas insolucionáveis, de pessoas imutáveis, amores incuráveis...
Mas é também um sofrer passivo, consensuoso.
Um sofrer de querer, um querer sofrer... Um certo prazer na dor.
A extensão do prazer no não finalizar das coisas.
O prolongado da dor no saber das nãos correspondências.
A expectativa de um dia haver a correspondência,
E o insandecer no esperar...
Esperar que a dor tenha fim
Que a espera tenha fim
Que no fim é a espera da própria espera...



domingo, 24 de junho de 2007

Ensaio sonbre as intenções desse blog

Não se iludam...
Esse blogger é totalmente individualista. Sua pretensão única é incursionar em torno dos devaneios de uma mente que se acha iluminada pelo fantasma de uma entidade literária totêmica.
Na verdade, Capitu é apenas um artifício para preencher esse fragmento de espaço entre a realidade e a ficção. Apenas pretendo flertar com a personagem para dar forma aos devaneios.
São as palavras, são elas que precisam de um totem...
Elas não saem por elas mesma, não têm a força necessária.
As palavras são insustentáveis.
Querem dizer, mas se prendem a um não sei o que...
E é Capitu, tudo por Capitu...